quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Os olhos de cada qual

Faz um tempinho que queria escrever sobre violência e hoje recebi um texto triste e lindo de Silvinha que disse tudo. Triste pelos olhos do menino visto também em tantos outros e lindo porque ainda tem gente, como Silvinha, com uma sensibilidade sem fim. Com a devida autorização, o texto segue abaixo e espero que ele emocione a todos como a mim.

O dia em que perdi o medo da morte
(Silvia Góes)

Era uma segunda-feira, onze horas da manhã, a semana chegava ainda, porque o domingo é preguiçoso e transfere a sua responsabilidade de primeiro dia sempre para a segunda-feira. Chegava perfumada, com aquele cheiro de terra quente acalmada pelo choro rápido de algumas nuvens, nada de tempestades. Odor de felicidade para mim, lembranças de uma infância em que os “banhos de chuva”, de calcinha bunda-rica no meio da rua, numa Garanhuns ainda mais interior, de final dos anos 70 e início dos 80, eram o retrato da alegria crua, o mais fiel que até hoje consigo ver. Há saudades que são verdadeiras orações.

Andava e andava, não, carreava, não é a mesma coisa, porque de carro a gente perde muito da beleza do chão, mas as quatro rodas existem e me ajudam a acompanhar o tempo de vez em quando. Prefiro andar, mas enfim, carreio mais do que queria por mais uma necessidade inventada. Dois meninos, um menor e outro maior, se protegiam dos pingos debaixo de uma árvore. Não passei por eles sem vê-los. Ambos estavam sentados, mas algo muito forte me levou aos olhos do mais crescido, uns dez anos eu acho, e trouxe os olhos dele para mim. Encontro. Vi. Desandei. Sabia que ele viria. Ouvi a sua raiva gritando nas retinas.

Ao longo da minha vida tenho encontrado algumas crianças muito tristes, em entrevistas, trabalhos por aí. Uma vez entrevistei um menino de oito anos que já tinha matado duas pessoas, tatuado por uma estrada cheia de sofrimentos, mas era uma criança e às vezes brincava e ria, até comigo ele brincou, aquela estranha que naquele dia chegava para saber da sua história, do nada. Hoje ele deve estar com uns 20 anos. Tomara! Não sei dele, não acompanhei, não criei raízes, infelizmente. Segunda-feira senti saudades dele. Há lembranças que são verdadeiros segredos do destino, nos ensinando a ser em sua dureza.

Olhei pelo retrovisor e vi o menino chegando. Passos lentos. Pisando o chão em que eu carreava de um jeito firme, resolvido. Tentei desviar, tive medo, desnasci. Ele mostrou a arma e pediu o celular e “todo o dinheiro de papel na bolsa”. Eu não tinha nem uma coisa e nem outra. Ele me odiava de um jeito intenso, com uma proximidade que eu nunca tinha visto antes. Então eu quis morrer. Nos olhos dele eu quis morrer. Disse que não me importava. Que vê-lo ali, me vendo daquele jeito, já tinha me matado. Ele virou as costas e saiu.

Nos olhos dele havia cicatrizes de muitas dores, tantas que os meus 32 anos de mundo não me ensinaram a contar, mesmo com lacerações na carne, nos ossos e no sangue que quase me derrubaram por duas vezes. Em mim, os olhos dele não se transformaram em mais uma cicatriz entre as que carrego debaixo da pele, mas numa nova ferida aberta para sempre no corpo da vida. E como tá doendo!

Talvez ele tenha percebido que eu me importava com ele e por isso não atirou, ou talvez a arma fosse de brinquedo, afinal era só um menino. Perdi a fé na vida por uma semana. Todos os dias passava pelo mesmo lugar procurando por ele outra vez. Queria encontrá-lo de novo. Ainda não sei para fazer o que, mas sigo tentando. Vivi meus dias seguintes, ressuscitei e inventei a cura para não fechar a ferida e mesmo assim ainda beber da chuva. A minha arma não é de brinquedo, é de verdade, chama-se amor, então decidi nascer para dizer que essa arma (a palavra tem coisas mágicas escondidas - arma é anagrama de amar) é a única capaz de matar a morte. E agora é minha missão dá-la de presente ao menino. Se alguém o encontrar por aí, peço por favor que o chame para brincar e tomar banho de chuva e que me avise, para que eu possa entregá-lo o meu regalo e caminhar com ele um pouco, com os pés no chão. Isso ele não pediu no assalto, mas podemos dar.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Hoje é segunda!


O final de semana foi na praia. Por vontade própria, dormi na rede. Na real a intenção era acordar cedo, acordar com o sol esquentando o juízo e esfriar com um mergulho no mar. É bem verdade que o zumbido e as picadas das muriçocas atrapalharam um pouco o sono, mas não havia de ser nada porque a caminhada matinal seria impagável. E foi.

Com os primeiros raios de sol levantei da rede. Prontamente, botei o biquíni e lá fui andando. Não tinha ninguém. Apenas eu e meus pensamentos, o mar, a areia branca dos carneiros, os coqueiros e uma faixa de terra pra caminhar. O pé no chão, a pele começando a esquentar com o solzinho e a água friazinha no ritmo das ondas, banhando meus pés.

Ai que coisa tão simples e gostosa de fazer. Já fiz demais isso quando criança lá em enseada. Água azul prateada, cheiro de sargaço de infância, sol esquentando a alma. E esse banco de tronco de coqueiro enterrado na areia, o máximo! Fico lá sentada. Viajando.

Aí vem o mergulho. Será que vou nessa água fria? Claro que sim! Mergulho bom de levar qualquer quizila. Feito a primeira cerveja gelada da sexta, que abre todos os pensamentos. Mesmo na praia e com tudo isso, o finde foi de trabalho filmando. Mas estar trabalhando não importa. O que importa mesmo é que hoje é segunda e que o sentimento é de paz e uma energia sem igual.

Para Nego Nu

Obs.: A foto é roubada da internet, eu estava sem máquina

A cachaça do amor

Chego no bar. Marido, amigas e conversa jogada fora. Adoro esse ambiente. No meio da noitada chega aquele senhor na nossa mesa. Barba branca, muito branca. Coisas que a idade faz com o povo. Um sinal que mostra logo que essa pessoa é diferente de você, que é cheia de cabelos pretos, muito pretos e pouca, quase nenhuma experiência de vida.

Conversa vai, conversa vem, “ cerveja garçon” . Amigo, uma cervejinha que o copo ta vazio e coisa pouca é ruim. Aí a conversa do momento é amor. Aquele senhor vai e conta uma paixão, um amor. No caso dele, perdido. Aliás, deixado pra lá. E de repente as sobrancelhas brancas ficam mais cerradas e ele começa a chorar.

Chorar, chorar pelo grande amor não vivido. A explicação é que lá pelo início da década de 70, as histórias de vida foram tomando rumos diferentes e toda aquele amor foi sendo esmagado pela vida. As palavras não ditas, os gestos não feitos, o medo de errar, o medo de cair, o medo de mudar, enfim tudo foi ficando maior do que o amor e pronto. Aí, saiu a fatídica frase que indica cada qual pro seu lado.

As décadas seguintes só evidenciaram o que eles já sabiam. O amor é grande. Cada qual constituiu família, casou, separou e aí, nessa noite no bar, depois do choro e da grande história de amor, descobrimos que a mulher amada é tia de uma das amigas. Resultado: o senhor da barba branca está novamente com o destino nas mãos dele. Um guardanapo meio amassado com números dos telefones meio embriagados da mulher sempre amada.